Fração

Que fração de segundo mede o desespero da mãe quando o filho se desprende em direção à rua? 

Quanto tempo mede o cristal que despenca da mão lisa e espalha o brilho na dureza do chão? 

Quanta eternidade corcoveia no dorso do touro o ginete em busca da glória? 

Quantas vidas  se revivem na distancia entre o dedo no gatilho e o crânio que se desmantela? 

Quantos quilômetros percorre a cabeça do motociclista do tastaveio ao poste que cruza a avenida? 

Quantos anos ainda contam os ponteiros do relógio na distância entre a mão e o mármore que o estilhaça? 

Quantos arrependimentos nascem entre o décimo terceiro andar e a grama do jardim? 

Quanta angústia entre a última palavra desferida e o peito da pessoa amada? 

Quantos passos em vão na  direção da pandorga que soltou o barbante?

Quanta coragem entre o corte da lâmina e a veia que verte rubros pelos pulsos?

Quantos medos entre a última contração e choro da criança tão esperada?

Quantos gritos trancados entre o pé do atacante e as mãos do goleiro na penalidade? E quantos descompassos do coração até o apito final?

Quanto tempo não  existe  o ser humano, no todo saber do juiz, entre a petição inicial e a sentença?

A insondável fração de tempo. O mudar repentino de estados, de espíritos, de formas. A desconstrução das coisas. A implosão de mundos, prédios, pontes. A quebra do que vinha sendo e não mais será – desvios ou confirmações do destino?

Na insondável fração do tempo, a certeza de que o possa ter mudado, foi para sempre. O pé no freio na hora certa, o aperto firme na mão da criança, o desligar da energia elétrica. Ficar tranquilo com a  arma descarregada, a porta com tramelas, a luz agora acesa. Reforçar a reza na hora do gol, a espera no portão da casa, a bebida sem o álcool, lavar as mãos. Não esquecer de colocar o capacete, a luva, o cinto de segurança.

Do corpo arrebentado nas mãos do meu conhecimento, um ínterim de decisões. O tempo certo para intervir, para abrir o peito, para massagear o coração. O tempo entre a última sístole que pode não ter a sua ociosa diástole. O tempo ácido, em apneia, em sufoco. Um tempo ágil em acesso de veias, em dançar de ampolas, em acionar um desfibrilador.   

Um tempo de trazer a vida ou um tempo de se consternar com a fração da morte.

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